2024.09.21—2024.11.09
Quanto tempo o Tempo tem
Fernando Lanhas

Fernando Lanhas
Quanto tempo o Tempo tem
  

"Um conjunto de óleos, de desenhos, de colagens, de pedras pintadas, de palavras (ditas) escritas associam-se no espaço unificado de uma exposi­ção e de um livro para nos dar conta do modo como Lanhas entendia o Mundo. A exposição, e este livro que a prolonga, não são nem uma retrospec­tiva nem o resumo antológico da obra (e vida) de Fernando Lanhas. E, no entanto, pela suficiente informação que nos fornecem, permitem-nos aceder ao essencial da sua obra e vida criativa. Os vários campos de estudos científicos que cul­tivou, que se iniciam entre 1940 (paleontologia e geologia) e 1952 (astronomia), mas também bo­tânica e mesmo arqueologia, foram sempre arti­culados com os saberes artísticos colocando-o na descendência directa do espírito global do Homem renascentista.

 

A obra de Lanhas torna-nos conscientes de realidades que dificilmente apreendemos com os nossos sentidos. Neste texto tentaremos demons­trar que a sua obra existe (e quer ser entendida) em dimensões de Espaço e Tempo humanamente não mensuráveis — como se as realidades que Lanhas criou (pinturas, desenhos, palavras, …) , e as realidades para as quais olhou e sobre as quais trabalhou mais entusiasticamente (as estrelas e os planetas, as rochas e os fósseis), existissem em simultâneo, sempre tivessem estado onde estão e ali continuassem depois das exposições acabarem, depois dos livros serem fechados, depois das palavras mudarem de sentido, depois de desaparecer quem de tudo isso tivesse falado, quem tudo isso tivesse visto, depois das estrelas se afastarem modelando novos universos… Em suma, tudo no processo conceptual e criativo de Lanhas, desafia o curto Tempo e o escasso Espaço que estamos constrangidos a viver e nos confronta com sucessivos Infinitos.

 

Ao conhecermos de modo aprofundado a obra e vida de Lanhas (a quem o seu amigo, crítico e biógrafo Fernando Guedes simbolicamente con­tou “Sete Rostos”) perceberemos que foi o insa­ciável desejo de conhecer o Mundo que o conduziu por esses sete (ou mais) caminhos. O homem que nos interessa revelou-se inteiramente na sua prática como artista plástico; mas a verdade é que apenas foi homem das Artes (e das Letras, pois são de interesse complementar decisivo os seus poemas e as narrativas dos seus sonhos) na me­dida em que se entendeu a si mesmo também como homem da Ciência. E foi na justa medida em que cruzou a metodologia, experimental e ob­jectiva, da Ciência e o experimentalismo subjec­tivo da Arte que o encontramos também como homem de Fé. Lanhas aceitou, em paralelo, a ra­cionalidade científica e a dimensão do inexplicá­vel, de um conhecimento não sujeito nem à prova nem à prática da experiência, uma verdade situada acima das leis humanas, e dispôs-se a usar a Arte como campo de prova dessa realidade e desse mistério.

 

Ser arquitecto não foi, para Lanhas, profissão que lhe tivesse fornecido a estabilidade de um estatuto ou garantido lugar cativo na sociedade; foi uma vocação interior que se prolongou para além do trabalho específico de construir casas ou edifícios públicos. Foi arquitecto porque sen­tiu que à engenharia faltava a dimensão de enten­dimento do Belo que o transformasse de mero desenhador de espaços habitáveis em pensador do Universo que habitamos. E foi arquitecto por­que aos artistas plásticos lhes faltava a dimensão de entendimento do Útil e do Bom capaz de trans­formar um mero decorador de espaços em des­cobridor das matérias, das linhas e cores, das formas e espaços que se escondem sob a aparên­cia do efémero e da mera experiência sensorial.

 

Nos primeiros anos da década de 1940 Fernando Lanhas era aluno de arquitectura no Porto e a Escola vivia (sob a direcção de Carlos Ramos) momentos de grande qualidade de en­sino e liberdade criativa. Os alunos de artes e os de arquitectura conviviam intensamente e o que resultou desse convívio garantiu ao país décadas de boa construção, bom urbanismo e boa arte. Lanhas foi um dos mais activos dinamizadores dessa energia juvenil organizando as várias edições das Exposições Independentes (com extensõesa Lisboa e Coimbra) onde, sem as barreiras esté­ticas de outras iniciativas, conviveram, durante algum tempo, modernos (tal como os defina o SPN/SNI), neo-realistas e surrealistas e onde se revelaram os abstractos.

 

É precisamente como artista abstracto geo­métrico que devemos entender a contribuição decisiva que Lanhas deu ao desenvolvimento da arte portuguesa na década de 1940 e seguintes. As suas primeiras pinturas são figurativas, muito expressivas quer na sua realidade material quer na exasperação formal (por vezes feitas de ângu­los agudos ou linhas curvas contínuas cruzando-se no plano para formar figuras esquemáticas) quer na sua temática (rostos torturados pela velhice, por exemplo); mas eram obras já muito depuradas nas formas, nas cores (muitas vezes tonalidades de uma mesma cor) e com a pers­pectiva quase ausente — eram pinturas muito gráficas. O fundo poético que determinava e que geria essas obras era evidentemente simbolista e expressionista, não na radical dimensão do ex­pressionismo norte-europeu, mas na continui­dade de uma sensibilidade pós-romântica que, no contexto cultural (literário e artístico do Norte de Portugal) radicava em António Carneiro e Teixeira de Pascoaes.

 

Sem conhecimentos teóricos específicos e com um conhecimento iconográfico escasso re­lativamente à primeira abstracção mundial (dos anos de 1920-30) ou conhecimento nulo relativa­mente à abstracção coeva foi por intuição que Lanhas (também praticamente isolado interna­mente), avançou. A especial situação de neutrali­dade e paz da sociedade portuguesa, embora em contexto culturalmente periférico, desinformado e repressivo, permitiu-lhe avançar na senda da Abstracção antes que a situação internacional dos pós-guerra tivesse realmente aberto a Europa ao ressurgimento dessa corrente. Não servindo de justificação estética, nem ética ou política, à qua­lidade e êxito da sua obra, é certo que a Abstrac­ção teve, sobre o Neo-realismo ou o Surrealismo, a “vantagem” de não referir as realidades do mundo exterior facilitando assim a tolerância do regime e da crítica mais conservadora para com as obras dessa corrente—algumas das melhores páginas sobra a sua obra são, aliás, de críticos dessa área, como Fernando Guedes ou Selles Paes de Villas-Boas.

 

As suas primeiras pinturas abstractas iniciam- -se como simplificação de formas do mundo ex­terior. O ano de 1943 para 1944 foi, na obra de Lanhas, tempo de uma transição decisiva tendo realizado então as suas primeiras experiências verdadeiramente abstractas a partir de pequenos apontamentos fixados nas margens dos progra­mas de algumas audições musicais lhe iam ser­vindo de mote. Desse processo resultou uma obra maior, o O2-44 (óleo número 2 de 1944). A pintura foi, significativamente intitulada, “O Violino”, antes do autor ter encontrado uma fórmula de designa­ção objectiva para as obras (indicação da técnica através de uma letra, do número de ordem e da data de realização).

 

Nadir Afonso, outro pioneiro português da abstracção, viajando para Paris nos anos 50, rapi­damente se relacionaria com as correntes abs­tractas internacionais suas práticas e teorizações (como as difundidas pelo alargado Salon des Réalités Nouvelles e pela Galeria Denise Renée); mas Lanhas, seguindo uma linha que evitou o concretismo de Max Bill do mesmo modo que evi­tou o dinamismo Op de Vasarely, preferiu explorar linhas de interpretação metafísica.

 

As suas pinturas desenvolveram-se a partir de modelos abstractos, determinadas pelo leque cada vez maior de informações que ia recolhendo nos seus estudos científicos. Na sua variada obra plástica Lanhas pode fazer-nos passar da ima­gem macro (telescópica) para uma imagem micro (microscópica); balança-nos entre o peso meta­fórico das pedras pintadas e a leveza de um dese­nho onde uma criança pode erguer nas mãos o Mundo, como quem vai lançar uma bola; leva-nos das cores cinza (onde chega a misturar pó de rocha) até aos azuis-celestes e violetas ou dos negros siderais ao castanho das terras férteis; faz-nos transitar (num processo sempre reversí­vel) entre as dinâmicas linhas circulares e diago­nais e os campos uniformes das cores de fundo. Lanhas cria, assim, diferentes planos e níveis de espacialidade ultrapassando as limitações da bidimensionalidade dominante e abrindo a inter­pretação de cada obra a diferentes sentidos e realidades visuais.

 

Com esses elementos Lanhas construiu um vocabulário de signos abertos onde o círculo ou a circunferência, os seus fragmentos e segmentos, áreas triangulares ou feixes de linhas rectas, se associam em jogos de instabilidade e equilíbrio múltiplo. São formas que infinitamente se podem associar bem como prolongar no espaço, simu­lando registos esquemáticos de paisagens, sig­nos centralizados no espaço construindo a ficção de complexas sinalizações gráficas pertencentes a um código de comunicação desconhecido, de uma escrita secreta, pedindo decifração…

 

A composição de base das suas obras faz-se pela habitual segmentação do quadrado e do cír­culo, pela intersecção das formas geométricas resultantes e das linhas entre si. Porém, a imagem final da obra apresenta-se como fragmento de uma unidade que teremos que procurar recons­tituir, como enigma que teremos que resolver. Obliterando os caminhos do seu raciocínio, obli­terando as linhas de construção de cada obra, como se a um mapa fossem retiradas as coorde­nadas ou à demonstração de um teorema fossem retiradas partes do raciocínio, Lanhas desejou exprimir-se por enigmas, como um profeta.

 

Todo este processo de entendimento e inter­pretação do mundo que vimos tentando descre­ver obrigou Fernando Lanhas a um confronto desigual com o Tempo e com a sua extensão, as suas matérias, formas e lugares. Mas o artista não cedeu nem renunciou ao seu livre-arbítrio de criador: as suas Pedras pareceram encontrar-se sempre com as formas que nelas inscreveu e não o contrário; as suas pinturas, ao prolongarem, por vezes por várias décadas, o seu tempo de con­cepção e realização (retomando soluções formais, cromáticas, associando datas distantes no tempo) simularam prolongar o tempo dentro do Tempo; finalmente, os seus sonhos revelaram-nos a tentativa de controlar o seu próprio corpo dentro do binómio Espaço-Tempo.

 

Sem referentes externos claros e sem ante­cedentes internos (a obra de Amadeo, nesses anos muito mal conhecida, não podia, de qualquer modo, fornecer pistas que lhe interessassem) Lanhas não criou também discípulos — nisso coincide com o comum das carreiras individuais dos grandes artistas modernos portugueses, em redor dos quais sempre se revelou impossível constituir “escolas”, numa vertigem de heteróni­mias incapazes de criar movimentos esteticamente coerentes e duráveis.

 

O que de Lanhas pode passar ao futuro situa-se fora da sua esfera criativa: serve de exemplo, a sua atitude ética e o inquieto deslumbramento perante a passagem do Tempo, o modo como isso o conduziu da criação artística à pedagogia cívica (investigando e publicando, pensado museus ou bibliotecas,…), a tentativa de prolongar a efeme­ridade da vida e das obras humanas através de uma arte pensada em harmonia com a eternidade dos elementos naturais que nos rodeiam.

 

A exposição e o livro que a serve reflectem o entendimento que Lanhas teve do fluir de ele­mentos que fomos enumerando. Há, na sua obra artística um conjunto de enunciados de dimensão metafísica que ele desejou pudessem acompanhar as leis científicas. A poética criativa de Lanhas existe nesse balanço entre a Verdade humana e o Mistério.

  
  
João Pinharanda 
Malaucène, 3 de Agosto de 2024