Fernando Lanhas
Quanto tempo o Tempo tem
"Um conjunto de óleos, de desenhos, de colagens, de pedras pintadas, de palavras (ditas) escritas associam-se no espaço unificado de uma exposição e de um livro para nos dar conta do modo como Lanhas entendia o Mundo. A exposição, e este livro que a prolonga, não são nem uma retrospectiva nem o resumo antológico da obra (e vida) de Fernando Lanhas. E, no entanto, pela suficiente informação que nos fornecem, permitem-nos aceder ao essencial da sua obra e vida criativa. Os vários campos de estudos científicos que cultivou, que se iniciam entre 1940 (paleontologia e geologia) e 1952 (astronomia), mas também botânica e mesmo arqueologia, foram sempre articulados com os saberes artísticos colocando-o na descendência directa do espírito global do Homem renascentista.
A obra de Lanhas torna-nos conscientes de realidades que dificilmente apreendemos com os nossos sentidos. Neste texto tentaremos demonstrar que a sua obra existe (e quer ser entendida) em dimensões de Espaço e Tempo humanamente não mensuráveis — como se as realidades que Lanhas criou (pinturas, desenhos, palavras, …) , e as realidades para as quais olhou e sobre as quais trabalhou mais entusiasticamente (as estrelas e os planetas, as rochas e os fósseis), existissem em simultâneo, sempre tivessem estado onde estão e ali continuassem depois das exposições acabarem, depois dos livros serem fechados, depois das palavras mudarem de sentido, depois de desaparecer quem de tudo isso tivesse falado, quem tudo isso tivesse visto, depois das estrelas se afastarem modelando novos universos… Em suma, tudo no processo conceptual e criativo de Lanhas, desafia o curto Tempo e o escasso Espaço que estamos constrangidos a viver e nos confronta com sucessivos Infinitos.
Ao conhecermos de modo aprofundado a obra e vida de Lanhas (a quem o seu amigo, crítico e biógrafo Fernando Guedes simbolicamente contou “Sete Rostos”) perceberemos que foi o insaciável desejo de conhecer o Mundo que o conduziu por esses sete (ou mais) caminhos. O homem que nos interessa revelou-se inteiramente na sua prática como artista plástico; mas a verdade é que apenas foi homem das Artes (e das Letras, pois são de interesse complementar decisivo os seus poemas e as narrativas dos seus sonhos) na medida em que se entendeu a si mesmo também como homem da Ciência. E foi na justa medida em que cruzou a metodologia, experimental e objectiva, da Ciência e o experimentalismo subjectivo da Arte que o encontramos também como homem de Fé. Lanhas aceitou, em paralelo, a racionalidade científica e a dimensão do inexplicável, de um conhecimento não sujeito nem à prova nem à prática da experiência, uma verdade situada acima das leis humanas, e dispôs-se a usar a Arte como campo de prova dessa realidade e desse mistério.
Ser arquitecto não foi, para Lanhas, profissão que lhe tivesse fornecido a estabilidade de um estatuto ou garantido lugar cativo na sociedade; foi uma vocação interior que se prolongou para além do trabalho específico de construir casas ou edifícios públicos. Foi arquitecto porque sentiu que à engenharia faltava a dimensão de entendimento do Belo que o transformasse de mero desenhador de espaços habitáveis em pensador do Universo que habitamos. E foi arquitecto porque aos artistas plásticos lhes faltava a dimensão de entendimento do Útil e do Bom capaz de transformar um mero decorador de espaços em descobridor das matérias, das linhas e cores, das formas e espaços que se escondem sob a aparência do efémero e da mera experiência sensorial.
Nos primeiros anos da década de 1940 Fernando Lanhas era aluno de arquitectura no Porto e a Escola vivia (sob a direcção de Carlos Ramos) momentos de grande qualidade de ensino e liberdade criativa. Os alunos de artes e os de arquitectura conviviam intensamente e o que resultou desse convívio garantiu ao país décadas de boa construção, bom urbanismo e boa arte. Lanhas foi um dos mais activos dinamizadores dessa energia juvenil organizando as várias edições das Exposições Independentes (com extensõesa Lisboa e Coimbra) onde, sem as barreiras estéticas de outras iniciativas, conviveram, durante algum tempo, modernos (tal como os defina o SPN/SNI), neo-realistas e surrealistas e onde se revelaram os abstractos.
É precisamente como artista abstracto geométrico que devemos entender a contribuição decisiva que Lanhas deu ao desenvolvimento da arte portuguesa na década de 1940 e seguintes. As suas primeiras pinturas são figurativas, muito expressivas quer na sua realidade material quer na exasperação formal (por vezes feitas de ângulos agudos ou linhas curvas contínuas cruzando-se no plano para formar figuras esquemáticas) quer na sua temática (rostos torturados pela velhice, por exemplo); mas eram obras já muito depuradas nas formas, nas cores (muitas vezes tonalidades de uma mesma cor) e com a perspectiva quase ausente — eram pinturas muito gráficas. O fundo poético que determinava e que geria essas obras era evidentemente simbolista e expressionista, não na radical dimensão do expressionismo norte-europeu, mas na continuidade de uma sensibilidade pós-romântica que, no contexto cultural (literário e artístico do Norte de Portugal) radicava em António Carneiro e Teixeira de Pascoaes.
Sem conhecimentos teóricos específicos e com um conhecimento iconográfico escasso relativamente à primeira abstracção mundial (dos anos de 1920-30) ou conhecimento nulo relativamente à abstracção coeva foi por intuição que Lanhas (também praticamente isolado internamente), avançou. A especial situação de neutralidade e paz da sociedade portuguesa, embora em contexto culturalmente periférico, desinformado e repressivo, permitiu-lhe avançar na senda da Abstracção antes que a situação internacional dos pós-guerra tivesse realmente aberto a Europa ao ressurgimento dessa corrente. Não servindo de justificação estética, nem ética ou política, à qualidade e êxito da sua obra, é certo que a Abstracção teve, sobre o Neo-realismo ou o Surrealismo, a “vantagem” de não referir as realidades do mundo exterior facilitando assim a tolerância do regime e da crítica mais conservadora para com as obras dessa corrente—algumas das melhores páginas sobra a sua obra são, aliás, de críticos dessa área, como Fernando Guedes ou Selles Paes de Villas-Boas.
As suas primeiras pinturas abstractas iniciam- -se como simplificação de formas do mundo exterior. O ano de 1943 para 1944 foi, na obra de Lanhas, tempo de uma transição decisiva tendo realizado então as suas primeiras experiências verdadeiramente abstractas a partir de pequenos apontamentos fixados nas margens dos programas de algumas audições musicais lhe iam servindo de mote. Desse processo resultou uma obra maior, o O2-44 (óleo número 2 de 1944). A pintura foi, significativamente intitulada, “O Violino”, antes do autor ter encontrado uma fórmula de designação objectiva para as obras (indicação da técnica através de uma letra, do número de ordem e da data de realização).
Nadir Afonso, outro pioneiro português da abstracção, viajando para Paris nos anos 50, rapidamente se relacionaria com as correntes abstractas internacionais suas práticas e teorizações (como as difundidas pelo alargado Salon des Réalités Nouvelles e pela Galeria Denise Renée); mas Lanhas, seguindo uma linha que evitou o concretismo de Max Bill do mesmo modo que evitou o dinamismo Op de Vasarely, preferiu explorar linhas de interpretação metafísica.
As suas pinturas desenvolveram-se a partir de modelos abstractos, determinadas pelo leque cada vez maior de informações que ia recolhendo nos seus estudos científicos. Na sua variada obra plástica Lanhas pode fazer-nos passar da imagem macro (telescópica) para uma imagem micro (microscópica); balança-nos entre o peso metafórico das pedras pintadas e a leveza de um desenho onde uma criança pode erguer nas mãos o Mundo, como quem vai lançar uma bola; leva-nos das cores cinza (onde chega a misturar pó de rocha) até aos azuis-celestes e violetas ou dos negros siderais ao castanho das terras férteis; faz-nos transitar (num processo sempre reversível) entre as dinâmicas linhas circulares e diagonais e os campos uniformes das cores de fundo. Lanhas cria, assim, diferentes planos e níveis de espacialidade ultrapassando as limitações da bidimensionalidade dominante e abrindo a interpretação de cada obra a diferentes sentidos e realidades visuais.
Com esses elementos Lanhas construiu um vocabulário de signos abertos onde o círculo ou a circunferência, os seus fragmentos e segmentos, áreas triangulares ou feixes de linhas rectas, se associam em jogos de instabilidade e equilíbrio múltiplo. São formas que infinitamente se podem associar bem como prolongar no espaço, simulando registos esquemáticos de paisagens, signos centralizados no espaço construindo a ficção de complexas sinalizações gráficas pertencentes a um código de comunicação desconhecido, de uma escrita secreta, pedindo decifração…
A composição de base das suas obras faz-se pela habitual segmentação do quadrado e do círculo, pela intersecção das formas geométricas resultantes e das linhas entre si. Porém, a imagem final da obra apresenta-se como fragmento de uma unidade que teremos que procurar reconstituir, como enigma que teremos que resolver. Obliterando os caminhos do seu raciocínio, obliterando as linhas de construção de cada obra, como se a um mapa fossem retiradas as coordenadas ou à demonstração de um teorema fossem retiradas partes do raciocínio, Lanhas desejou exprimir-se por enigmas, como um profeta.
Todo este processo de entendimento e interpretação do mundo que vimos tentando descrever obrigou Fernando Lanhas a um confronto desigual com o Tempo e com a sua extensão, as suas matérias, formas e lugares. Mas o artista não cedeu nem renunciou ao seu livre-arbítrio de criador: as suas Pedras pareceram encontrar-se sempre com as formas que nelas inscreveu e não o contrário; as suas pinturas, ao prolongarem, por vezes por várias décadas, o seu tempo de concepção e realização (retomando soluções formais, cromáticas, associando datas distantes no tempo) simularam prolongar o tempo dentro do Tempo; finalmente, os seus sonhos revelaram-nos a tentativa de controlar o seu próprio corpo dentro do binómio Espaço-Tempo.
Sem referentes externos claros e sem antecedentes internos (a obra de Amadeo, nesses anos muito mal conhecida, não podia, de qualquer modo, fornecer pistas que lhe interessassem) Lanhas não criou também discípulos — nisso coincide com o comum das carreiras individuais dos grandes artistas modernos portugueses, em redor dos quais sempre se revelou impossível constituir “escolas”, numa vertigem de heterónimias incapazes de criar movimentos esteticamente coerentes e duráveis.
O que de Lanhas pode passar ao futuro situa-se fora da sua esfera criativa: serve de exemplo, a sua atitude ética e o inquieto deslumbramento perante a passagem do Tempo, o modo como isso o conduziu da criação artística à pedagogia cívica (investigando e publicando, pensado museus ou bibliotecas,…), a tentativa de prolongar a efemeridade da vida e das obras humanas através de uma arte pensada em harmonia com a eternidade dos elementos naturais que nos rodeiam.
A exposição e o livro que a serve reflectem o entendimento que Lanhas teve do fluir de elementos que fomos enumerando. Há, na sua obra artística um conjunto de enunciados de dimensão metafísica que ele desejou pudessem acompanhar as leis científicas. A poética criativa de Lanhas existe nesse balanço entre a Verdade humana e o Mistério.
João Pinharanda
Malaucène, 3 de Agosto de 2024