17.03.22 – 07.05.22 | Galeria Quadrado Azul | Lisboa
A Galeria Quadrado Azul tem o prazer de apresentar Flotsam & Jetsam, uma exposição com obras de Hugo Canoilas e Willem Weismann.
O título enigmático desta exposição, que simultaneamente nos transporta para nomes de empresas que não deixam adivinhar imediatamente a sua verdadeira atividade, ou para um duo musica, um título de filme[1] ou livro, acarreta consigo noções de naufrágio e de despojos marítimos. Na linguagem marítima, flotsam serve de descrição para os destroços ou carga que permanecem a flutuar depois de um naufrágio, enquanto que jetsam equivale ao equipamento propositadamente atirado para fora de um navio em perigo ou com excesso de carga a bordo. Os significados individuais são perdidos na frase comum Flotsam e Jetsam, que caracteriza objectos inúteis ou descartados mas que igualmente se estendeu a uma utilização metafórica para qualquer acumulação de probabilidades e fins.
Flotsam & Jetsam é tomado pelos artistas como uma nuvem que se ergue no topo da exposição sem ser explicada ou totalmente abraçada pelas obras. Existem contudo alguns fios que criam associações e possíveis leituras ao visitante. Os naufrágios servem de imagem para os atuais desastres ecológicos, sociais e políticos. Poder-se-ia dizer, que o naufrágio tem sido uma consequência da actividade humana que é coerente com a sua forma autofágica de vida e desenvolvimento. O excesso de lixo que acaba no mar, devido ao excesso de produção, sobrepopulação, incapacidade de ultrapassar as limitações da imaginação e modus operandi dos humanos são aspectos muito presentes nas pinturas de Weismann.
Reflectindo sobre a natureza, principalmente os ecossistemas nas profundezas do mar, as suas novas formas de vida novas e as suas possibilidades especulativas, as obras recentes de Canoilas existem entre o natural e o imaginado. Algumas das obras, provêm diretamente de uma imagem que o artista criou na sua cabeça enquanto lia "Morrer na América"[2] de Pedro Neves Marques. Num capítulo preciso, Marques descreve uma estranha estrutura a nadar à volta de uma plataforma petrolífera marítima no Novo México - as pessoas não sabiam dizer se esta estrutura era lixo ou uma nova forma de vida. A descrição do vídeo no youtube, mencionado no texto, apenas ajudava a manter esta dúvida viva, ao mostrar uma forma pouco clara, ondulando em águas turvas e sujas.
De alguma forma, esta ficção serve de preâmbulo tanto para as obras de Canoilas como de Weismann, pelas suas qualidades formais que permitem que as pessoas se projetem nos múltiplos elementos apresentados. A noção de grotesco original (formas sem forma) pode aqui ser resgatada como um lugar para projecções, à semelhança do que acontecia nas igrejas barrocas, em que a população projetaria os seus medos e esperanças sobre os motivos grotescos dourados no lusco fusco, sem contudo conseguir identificar os seus elementos de fora ou fauna (incluindo humanos).
Em “Invention is nature”[3] (A invenção é natureza), Chus Martinez defende que o interesse dos artistas pela natureza não é um movimento passageiro, mas algo que existe como um continuum. Acima de tudo, o principal interesse dos artistas é a própria arte, e uma vez que "a invenção é natureza", este interesse, aparentemente desprovido de exterioridade, relaciona-se com o mundo de uma maneira íntima. O exemplo dado por Martinez é a abstração-processo – seguindo modos ou programas de ação predefinidos que de forma mimética à natureza beneficiam de simbiose ou osmose entre materiais, e sofrendo a ação dos elementos sobre a mesma.
O visitante terá de coexistir entre dois mundos, resultantes de programas distintos, nos seus processos, e sistemas de valor, implicando formas de signifcação, e, ou diferentes qualidades epistemológicas.
No fundo, é no campo da arte que através da hipersensibilização dos corpos e da sua capacidade de expansão da consciência humana que somos permitidos ensaiar para além das nossas (in)capacidades de lidar com outros mundos[4], como nas relações entre humanos e não-humanos.
É necessário um modo activo de ver para que, com imaginação e elasticidade, se criem relações entre um e outro modos epistemológicos. É nessa projeção, daquele que vê, que se inscreverão as obras no real num gesto que as territorializará de sentido.
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[1] Flotsam e Jetsam são duas moreias que auxiliam a bruxa Ursula no filme de animação da Disney „A pequena sereia“ de 1989. Para saber mais consulte:
https://little-mermaid.fandom.com/wiki/Flotsam_and_Jetsam
[2] Marques, Pedro Neves „Morrer na América“ Ed. Arranha Céus e Kunsthalle Lissabon; Português, 2015.
[3] Martinez, Chus ; “Invention is nature“ in “The wild book of Inventions”, Editado por Chus Martinez; Publicado por Stenberg Press e Institut Kunst, FHNW Academy of Art and Design; Abril 2020, Inglês.
[4] A teoria semiótica de Jakob von Uexküll e Thomas A. Sebeok, intitulada de umwelt, defende a percepção do ambiente através das capacidades próprias a cada organismo, existindo assim mundos diferentes para cada , explicando assim a impossibilidade de compreensão de um organismo por parte de outro, humanos e não humanos.