Longe da Lareira
Bassline é o título da nova exposição de João Marçal na galeria
Quadrado Azul, no Porto. Este título faz referência ao álbum Heart Frostbite (um duplo LP) que Marçal
vai editar graças ao programa de apoio à criação artística Criatório, da Câmara
Municipal do Porto – o seu primeiro disco desde Group Show, em 2015. Tanto as pinturas como os desenhos de Bassline estão relacionados com as
músicas de Heart Frostbite, entre as
quais se contam títulos como Drunk
Optometrist, En la calle ou Diapers for Adults. Segundo Marçal, o
baixo desempenha, na música, um papel parecido com o da pintura nas artes
visuais. Tal como o baixo, a pintura é uma estrutura que "envolve" as
coisas. É diferente da bateria, por exemplo, cuja função é sobretudo a de "marcar"
um ritmo. A pintura também pode ser entendida como uma linha de baixo do ponto
de vista da História da Arte; ou seja, como o pano de fundo de toda a arte
ocidental. Por vezes mais presente e noutras menos, mas está sempre lá.
Diferente de outras exposições recentes, como Inner 8000er, no Pavilhão Branco, em Lisboa (2018), em que predominava a pintura; ou Dzi Bead, na galeria Quadrado Azul de
Lisboa (2019), em que experimentava os murais e a grande escala, neste novo
projecto, Marçal quis enfatizar a relação entre duas escalas - a da pintura e a
do desenho - criando um diálogo provocado pela justaposição de obras, como
dípticos, numa das paredes da galeria.
Além disso, em frente a cada uma das pinturas, Marçal
decidiu instalar uma cadeira que pode ser usada pelos visitantes. A cadeira
introduz a escala humana e estabelece uma continuidade com as obras, como o
varão de metro da exposição Dzi Bead.
Na parede oposta, a exposição termina com uma pintura que reproduz um detalhe
da lareira da casa de um parente da sua companheira - seguindo uma lógica
semelhante à da peça referente à casa de banho do seu antigo apartamento no
Porto, mostrada no Pavilhão Branco, dando lugar a uma envolvência de
reminiscências domésticas, mas ao mesmo tempo uncanny.
As pinturas são inspiradas nos estofos de empresas de
transporte que prestam os seus serviços entre o português rural e as capitais.
Os desenhos, por outro lado, remetem para o imaginário da banda desenhada, do
qual o artista é aficionado (em especial do autor Jiro Taniguchi). As pinturas
são abstractas e os desenhos são figurativos, pelo que parece que não têm nada
que ver. Ainda assim, influenciam-se mutuamente. De facto, os desenhos também
poderiam definir-se como a "linha de baixo" da pintura; a estrutura
que serve de suporte para a parte mais vistosa e acessível da obra, como a
guitarra e a voz do vocalista numa banda. Do ponto de vista do conteúdo, a
relação entre os estofos e a banda desenhada tem que ver com a memória e talvez
com a nostalgia de outra vida.
Os estofos de autocarros são um tema recorrente na obra
de João Marçal; apareceram pela primeira vez em 2012, na exposição Dona Maria Amélia. Esta recorrência tem
que ver com a necessidade de manter esse cordão umbilical com o passado. Mais
concretamente, com o ambiente social que o acompanhou e alimentou durante a
infância e a adolescência - até se ter mudado para o Porto para estudar Belas
Artes - composto pelos desajustados que, apesar de tudo, não têm capacidade
para viajar de carro particular e que o fazem através de meios mais modestos,
como transportes públicos ou em empresas privadas locais: fundamentalmente os
estudantes, as pessoas com poucos recursos e os idosos. Um pouco como os Greyhound, cheios de renegados, drogados
e fugitivos, que fazem parte do imaginário literário e cinematográfico
norte-americano.
As pinturas realizadas a partir de estofos de autocarros
e comboios têm um comportamento peculiar porque não parecem o que são: o tecido
está reproduzido de tal modo que parece autêntico e não representado. Isto
obriga o observador a aproximar-se e afastar-se para verificar qual a realidade
dos objectos que contempla. Este comportamento ilusionista já estava presente
noutras exposições anteriores de Marçal, como Dzi Bead (2019), e repete-se agora em obras como Above the Clouds.
A-B-O-V-E-T-H-E-C-L-O-U-D-S, Lisboa(-Porto),
Emotionally Homeless ou Foggy Dawn. Quadros compostos por
padrões com um fundo geralmente escuro e estruturas geométricas ou arabescos em
tons mais claros, luminosos, sobrepostos no primeiro plano, cujo efeito distrai
o olhar humano, permitindo ocultar ou dissimular a sujidade e as nódoas. A cor
está ausente em desenhos grotescos como os do cão a ladrar ou a cabeça de um
idoso com o cabelo do Bart Simpson que, no entanto, partilham a vocação popular
ou familiar dos estofos.
Com Bassline,
Marçal consolida e expande a sua linguagem. Por vezes de maneira radical, como
sucedeu na sua recente exposição na galeria Quadrado Azul em Lisboa, na qual
surpreendeu com um conjunto de obras novas que interagiam com a arquitectura.
Marçal é um dos artistas da sua geração que mais e melhor tem repensado a
pintura em Portugal, tanto a partir de referências históricas (Stella, Noland,
Palermo, Polke, Krebber...), como locais, fazendo parte de uma nova geração de
artistas portugueses (Sónia Almeida, Ana Cardoso, Joana da Conceição, Ana Manso, José Loureiro, André Sousa…), que renova e transforma a
tradição moderna iniciada pelos seus antecessores, artistas como Eduardo
Batarda, Ana Jotta, Álvaro Lapa, Ângelo de Sousa...
Neste contexto, a pintura de João Marçal distingue-se
tanto pelo seu intenso carácter auto-referencial, como pelo seu amor pelo
vernáculo e pelo popular, criando uma dialéctica muito produtiva e pessoal: por
um lado, porque se trata de uma pintura intensamente biográfica, ainda que à
primeira vista não pareça. Algo que está presente na forma como aborda o meio
das suas origens como, por exemplo, no auto-retrato que realizou para o seu
projecto de fim de mestrado (MPAC) em 2008, com o seu pólo preferido e umas
inseparáveis sapatilhas Reebok Classic.
A sua pintura é auto-referencial, também, porque se trata de uma reflexão sobre
o próprio meio: "Há sempre uma camada em todos os meus trabalhos",
apontava Marçal em 2018, "que remete para um pensamento sobre a própria
pintura, como uma análise genética do próprio meio, intrínseca a toda a
prática." (Inner 8000er: 2018,
10)
Entre o auto-referencial ou abstracto e o popular,
podemos imaginar João Marçal a viajar de Coruche para o Porto num autocarro, enquanto
lê uma banda desenhada ou desenha num caderno. Do conflito entre essa realidade
e a cultura formal da escola, das instituições artísticas e dos museus, surgem
estas pinturas e desenhos; uma espécie de síntese entre a sua origem e os novos
contextos sociais e culturais nos quais se tem integrado desde então. Outra
forma de interpretar essa linha de baixo a que se refere o título - sempre
presente, mas discreta - seria vê-la como uma espécie de voz profunda ou
subconsciente que emerge nestes trabalhos com um ânimo de certo modo
melancólico que coexiste com o brilho e superficialidade dessa miragem a que
chamamos "arte contemporânea."
Pedro de Llano, Março de 2020