Inauguração: 19 de Setembro, 22 horas
Isto não é uma folha de sala.
Queria apenas partilhar umas ideias sobre o trabalho do João e acho que este
pode ser o formato. Provavelmente não é. Também não tenho a certeza que o João
se identifique totalmente com as minhas ideias sobre o trabalho dele, mas ele é
um artista e é assim que funciona, faz parte do jogo. Quando jogo este jogo com
o trabalho dele nunca sei até que ponto as regras estão a ser manipuladas ou
não, é sempre como encontrar um baralho de cartas no meio da rua e ser
convidado a jogar ou encontrar uma pessoa que se conhece da televisão na rua.
Não é de enganos que estou a falar mas de deslocações, de ver algo familiar
fora do sítio ou algo que penso conhecer com os códigos mudados.
O João tem um apetite visual
voraz, hungry like a wolf, diria mesmo que tem uma vocação para a
apropriação, mas acho (aliás, tenho a certeza) que não estamos a falar de
apropriação como se fala em Arte, não estamos a falar de Dadaísmo, nem de Pop
Art (talvez um bocadinho), acho que é algo diferente, não oposto, mas ao lado,
paralelo, que tem muito mais a ver com a vida e com a realidade do que com
qualquer exercício conceptual. Podia falar, em vez de apropriação, de
re-significação, de uma re-significação pessoal, diria até emotiva das coisas
que existem à sua volta. Não estou a falar de um preencher com significado novo
um vazio, nem de um processo de negociação entre coisas e o seu significado
convencionado, mas de um vai-e-vem, alguma coisa entre o roubo revolucionário e
um póster que sai numa revista e é pendurado no quarto. Street fighter.
As coisas que são apropriadas
(ou re-significadas) estão longe de ser vazias, são muitas vezes agressivamente ou sorrateiramente
ideológicas, coisas que foram feitas para ter um significado específico, não
negociável. Acho que aqui está um ponto a que queria chegar: uma
re-significação, sobretudo emocional, destes emissores é uma forma de lidar com
esses monstros, só este tipo de sensibilidade corrói esta unilateralidade da
produção corporativa de símbolos. Acho importante esta recusa da
universalidade. O João precisa de roubar estas coisas porque fazem parte da
vida dele e, a partir de agora, são dele, são os seus amuletos e significam o
que ele bem entender, ou, retirando esse lado tão consciente, passaram a
significar outra coisa só pelo simples facto de serem dele e estarem na vida
dele. What do YOU represent??!!
Padrões desenhados anonimamente
em qualquer departamento de uma fabrica têxtil para serem usados em lençóis e
bancos de autocarro passam a ser panos de fundo para micro-eventos, viagens ou
noites mal dormidas, tal como a monotonia geométrica de azulejos monocromáticos
ou as otimistas capas de VHS graváveis. As cores que foram estudadas para
identificar uma marca de cassetes passam a identificar a experiência do filme
que foi gravado e não a imagem corporativa da marca. Cores e formas passam a
ser apenas condutores como fios eléctricos, em que a corrente passa nos dois
sentidos, ou mesmo vasos não comunicantes, como se tivessem sido isolados por
grossas camadas de borracha. Referências à Arte entram no trabalho, às vezes de
uma forma absolutamente honesta por uma admiração real, noutras de forma
absolutamente absurda pela quantidade de vezes que foram filtradas e destiladas
pela realidade, como se desse para fazer uma historiografia visual invertida
entre o padrão do autocarro e as primeiras pinturas modernas. De qualquer
forma, dependendo de onde se olha, a distância entre uma pintura do Frank
Stella e um autocolante pode ser ténue.
Há um trabalho na exposição que
para mim tem uma capacidade metafórica enorme, e que pode ser exemplificativa
de uma visão sobre o trabalho do João. Um varão de metal pintado de amarelo
ocupa verticalmente o espaço da galeria, do chão ao tecto, uma torção percorre
a linha que deveria ser direita, esta forma é obviamente um dos varões em que
as pessoas se seguram no metro para não caírem, em tudo esta escultura está
mascarada de varão. E a torção (assim como as bifurcações que começam a
aparecer nos varões) deve muito provavelmente ter sido desenhada por uma equipa
que procurava resolver um problema, um varão de dois metros na realidade só
serve para duas ou três pessoas se segurarem, esta torção, esta deformação
estrutural aumenta a zona de contacto entre o objecto e as pessoas e eu acho que
isto é um ponto importante. Desvios, torções, repetições, padrões, e todos os
métodos de trabalho do João servem para, como o desenho do varão, aumentar a
área de contacto entre as formas abstractas e as pessoas, que seguem a sua
viagem e muito provavelmente ignoraram o poste porque iam a olhar para o
telemóvel.
André Romão
Setembro 2019