Uma botoneira com catorze campainhas e
um cesto de publicidade marcam a entrada da gruta. Dentro do cesto, está o
livro The cunt colouring book de Tee
Corinne, que foi editado pela primeira vez em 1975. Corinne recolheu desenhos dos genitais
femininos que eram utilizados em grupos de educação sexual, organizando-os num
livro de colorir, para que os adultos pudessem aprender sobre a sua
anatomia sexual. No lado oposto da sala, encontram-se instaladas 14 imagens repetidas do
buraco de uma campainha com fios descarnados. As primeiras afiliações são
simples: entre gruta e buraco da campainha ou entre gruta e vagina.
Num jogo de diferença e repetição informado
pela arte minimal e conceptual, pervertido pelo sentido de humor e por uma
sobreposição de conteúdos que negam estes movimentos, a imagem repete-se,
acompanhada pela evocação de 14 personagens que
escaparam, se refugiaram ou viveram numa gruta. A mais fértil de todas estas
figuras será Odisseus (ou Ulisses) que, na
Odisseia de Homero, nos apresenta a figura de Ninguém, em torno da qual Sophie Nys desenvolveu a sua recente
exposição no Kiosk, em Ghent. Ninguém seria o último a ser comido por
Polifemo, o que acabou por lhe permitir a fuga, depois de embebedar e cegar o ciclope.
O ciclope ferido gritava, pedindo auxílio aos outros ciclopes, respondendo-lhes
que quem o ferira fora Ninguém.
Depois da grande peste do século XIV, Ninguém surge como figura imaginária
que absorvia as culpas nos assuntos domésticos. Ninguém era geralmente
retratado entre utensílios domésticos quebrados e com um cadeado que lhe
mantinha os lábios cerrados. Não podia falar e, portanto, não se defendia
quando era acusado de todos os incidentes da casa. Sempre que se perguntava
quem queimara a sopa ou substituíra o vinho por água, a resposta seria,
invariavelmente: Ninguém! A figura
foi retratada pela primeira vez na Alemanha, num panfleto do início do século
XV.
Ninguém convoca a figura frágil, política,
económica e socialmente oprimida pela sua condição de classe social e género. Aqueles
que perdem as suas casas por causa do boom imobiliário, que perdem os seus empregos,
etc. Ninguém pode ser também uma figura de resistência ao sistema vigente que
codifica a diferença.
Mantida no escuro, a gruta recebe uma
constelação de implicações políticas e sociais que lhe conferem parte das suas premissas
originais. A gruta é o lugar onde novas formas de empatia e novas cosmogonias
se podem desenvolver. Cabe ao visitante transportar mentalmente uma ou várias
destas figuras para dentro da gruta. A conversa e notas seguintes ajudam a
receber parte das forças presentes no trabalho de Nys que, através de
ferramentas e gestos simples, pretende rever aspectos históricos e culturais.
Sophie Nys (Bélgica, 1974) reúne
materias visuais e teóricos que examinam - muitas vezes
com ironia - temas de história e cultura social. Na sua prática, objetos e
imagens são transformados e reposicionados com meios e gestos reduzidos. Ao
fazer isso, a artista coloca questões sobre causa e efeito, transitoriedade e
continuidade, abrindo novos espaços para reflexão, narração e resistência. A
obra de Nys tem sido apresentada em exposições individuais no Bozar, Galerie
Greta Meert e La Loge em Bruxelas, Kiosk em Ghent, Crac Alsace em Altkirch,
Circuit em Lausanne, ProjecteSD em Barcelona e Guimarães em Viena.
E em exposições coletivas em Helmhaus, Archiv, Haus Konstruktiv e Kunsthalle em
Zurique, Kunsthalle Wien em Viena, Salzburger Kunstverein em Salzburgo,
Fundação Prada em Milão, Bienal de Veneza em Veneza, Artists Space New York em
Nova Iorque, Maniera, Établissement d'en Face, e Wiels, em Bruxelas. Sophie Nys
possui um mestrado em Belas Artes, realizou uma pós-graduação na Academia Jan
van Eyck e é professora na LUCA School of Arts, em Bruxelas.