O desafio da gruta está nas suas paredes rugosas, carregadas de imagens.
Por oposição às paredes brancas de uma galeria, que suspendem as obras do
mundo, os volumes desta gruta foram desenvolvidos por materiais reciclados e
objetos rejeitados pela sociedade que transportam a nuvem negra do antropoceno.
De um modo prático, as paredes desta caverna serão sempre um desafio para os pintores,
pelas suas protuberâncias e texturas, que dificultam a linha e forma exatas. A escala da caverna é um desafio,
assim como o modo orgânico dos seus planos, não ortogonais e não racionais.
Para além da generosidade daqueles que aceitam trabalhar na gruta sob um
conjunto de imposições práticas e
conceptuais, existe um dado tangível que é a forma como cada intervenção
interfere sobre a anterior e se abre a receber a interferência de outros,
criando um metabolismo antropofágico e anti-capitalista.
A intervenção de Katharina
Höglinger no interior da gruta centra-se na ideia de postura como parte do processo de habitar ou tomar um espaço, nas
suas várias acepções: por um lado, como gesto de um corpo que tem uma
fisicalidade própria e que se adapta às características do espaço; por outro,
enquanto adoptar de uma posição política e ética, que se reflete no modo como
convivemos com e num lugar. Tal como os primeiros hominídeos que deixaram a sua
marca nas paredes das grutas, Höglinger descobre um espaço que já existia antes
da sua chegada. A figura representada nas paredes da gruta está sentada e a sua
energia - presente nas linhas concêntricas - vem precisamente dessa paragem. O
recurso às almofadas é parte de uma procura, presente no percurso da artista,
para dar resposta a necessidades básicas que vão surgindo no quotidiano, e é um
gesto primeiro no processo de habitar e na procura de bem-estar no
recolhimento.
Katharina Höglinger trabalha com forças latentes do
seu corpo, tomado por percepções mínimas, intimidade e estímulos interiores
inerentes às micro narrativas, que exponenciam as possibilidades impostas pelas
grandes narrativas sociais, culturais e políticas. Esta diferenciação é operada
através de uma linguagem própria, que abala os pilares da história da arte,
determinados jargões e verdades absolutas vinculadas à arte em geral e à pintura
em particular.
Há uma leveza desarmante na obra de Höglinger, que
transgride a angústia que marca a nossa forma de viver no presente. Sem
cobardia, a sua visão é feita leve, e devolve-nos o resultado de um modo de
operar, livre do pathos das grandes
sensações, possibilitando-nos ver (ou viver) o quotidiano sem as restrições que
nos são impostas, sejam elas o futuro ou
a morte. Esta força positiva vem desenfreada, e sente-se como o tipo de
sabedoria que é a capacidade da arte
para criar novas relações entre coisas, de um modo distinto a ciência e
da comunicação, que se baseiam em
diferentes sistemas de conhecimento e linguagem.
Entre a leveza e a gravidade, numa oscilação entre
os problemas inerentes à resolução de uma pintura e uma narrativa pessoal que
se sobrepõe a qualquer lógica da pintura, amarrada aos problemas académicos e
históricos, a obra de Höglinger partilha parte do seu mundo investido no
sensível. A partilha do sensível ganha um recorte pessoal na forma como “fixa,
simultaneamente, o comum partilhado e as partes exclusivas”[1].
Por outras palavras, o ato de individuação só acontece no espaço coletivo
criado entre a sua obra e o público, na partilha do quotidiano com o todo, e ao mesmo tempo, como se exclui
- individualizando-se, no ato de pintar.
Pintura parece ser uma forma, de certo modo tanto
natural, de superação da linguagem, que nos permite ver para além da grelha que
molda a forma como compreendemos o mundo.
A partir desta transgressão, e
dentro de uma plasticidade própria da pintura, resultam figurações com
um fulgor positivo. Escrevo positivo, porque “quanto tempo poderá a cultura
persistir sem um novo? O que acontecerá se os novos não forem capazes de
produzir surpresas?” [2]
Como uma faca com duas lâminas, as construções narrativas
de Höglinger são dimensionadas pela desenvolvimento processual da pintura e
vice versa. A cor é um jogo de intensidades que vai para além da linguagem. Por
vezes a utilização de cor extrapola a figuração como superfície, autonomizando,
podendo tornar-se abstracta. Por outro lado, as figurações mais simples,
resultantes de uma intensidade e imediatez narrativa, exigem, por sua vez, uma
quase ausência de cor.
A pintura de Höglinger joga também na arena das
novas subjetividades. As suas pinturas ganham nova vida nas redes sociais.
Aqui, o sujeito que revolve o seu interior, através de estímulos e sensações,
casa coma subjetividade exterior e tecnológica. Sendo a pintura um meio
anacrónico, há algo redentor na forma como as pinturas entram e saem, infectam
e deixam-se infectar por um meio aparentemente díspar.
[1] Cardoso, Miguel „Ler Rancière: a improvisação dos incompetentes“, pág. 89-111; Revista Imprópria no2; Ed. Tinta da China/UNIPOP, Lisboa, 2o semestre 2012.
[2] “…how long can a culture persist without a new? What happens if the young are no longer capable of producing surprises” in Mark Fischer, Capitalism Realism – is there no alternative?, Zero Books, Winchester (UK), 2009.
Katharina Höglinger (1983)
Vive e trabalha em Viena, Áustria. Licenciada em pintura na Academia de artes da Universidade de Linz.
A sua obra tem sido apresentada de forma regular na Austria e no estrangeiro desde 2014. Das mais recentes exposições individuais destacam-se “a posture for something else”, TOWER, Viena (AT),”Bye now - cry later”, White dwarf projects, Viena (AT), “How I Imagine Afterlife”, Degraw Social Club, Nova Iorque (EUA), e “I Feel You Alive, Raumteiler, Viena (AT). A sua obra foi integrada nos últimos anos em exposições colectivas como “The Eventuality Dispenser, comissariado por MAUVE, “Fettes College”, Edimburgo, (IE) “on love”, Akademie Bibiliothek, Vienna (AT) “Symbolisms”, comissariado por Chris Sharp, Cooper Cole Gallery, Toronto (CA), “worry stone, a diary”, MAUVE, Viena (AT), “Iceman and Goose”, SORT Viena (AT) e Nova Iorque (EUA), “Times New Romantic”, mi1glissé, Berlim (DE),”Limbo Nr 1”, Limbus, Basileia (CH), “Bregenz Biennale”, Bregenz (AT), “Bones can fool people”, com Noel Ody & Helmut Heiss, Kluckyland, Viena (AT), “9 to 5”, Warner Gallery, Toronto (CA), “Creating Common Good”, Vienna Art Week, curated by Ursula-Maria Probst, Kunsthaus Wien, Viena (AT), “A Conflict of Site – Helmut Heiss & Katharina Höglinger”, Postorder Projects, Toronto, “Lote&Larp: HAMMER&HÖGLINGER”, galerie kunstbuero, Viena (AT) e Specks, Gleisdorfergasse, Graz (AT).