2019.03.16—2019.05.15
Seated Posture
Katharina Höglinger

O desafio da gruta está nas suas paredes rugosas, carregadas de imagens. Por oposição às paredes brancas de uma galeria, que suspendem as obras do mundo, os volumes desta gruta foram desenvolvidos por materiais reciclados e objetos rejeitados pela sociedade que transportam a nuvem negra do antropoceno. De um modo prático, as paredes desta caverna serão sempre um desafio para os pintores, pelas suas protuberâncias e texturas, que dificultam a linha e forma exatas. A escala da caverna é um desafio, assim como o modo orgânico dos seus planos, não ortogonais e não racionais. Para além da generosidade daqueles que aceitam trabalhar na gruta sob um conjunto de imposições  práticas e conceptuais, existe um dado tangível que é a forma como cada intervenção interfere sobre a anterior e se abre a receber a interferência de outros, criando um metabolismo antropofágico e anti-capitalista.
   
A intervenção de Katharina Höglinger no interior da gruta centra-se na ideia de
postura como parte do processo de habitar ou tomar um espaço, nas suas várias acepções: por um lado, como gesto de um corpo que tem uma fisicalidade própria e que se adapta às características do espaço; por outro, enquanto adoptar de uma posição política e ética, que se reflete no modo como convivemos com e num lugar. Tal como os primeiros hominídeos que deixaram a sua marca nas paredes das grutas, Höglinger descobre um espaço que já existia antes da sua chegada. A figura representada nas paredes da gruta está sentada e a sua energia - presente nas linhas concêntricas - vem precisamente dessa paragem. O recurso às almofadas é parte de uma procura, presente no percurso da artista, para dar resposta a necessidades básicas que vão surgindo no quotidiano, e é um gesto primeiro no processo de habitar e na procura de bem-estar no recolhimento.   

   
Katharina Höglinger trabalha com forças latentes do seu corpo, tomado por percepções mínimas, intimidade e estímulos interiores inerentes às micro narrativas, que exponenciam as possibilidades impostas pelas grandes narrativas sociais, culturais e políticas. Esta diferenciação é operada através de uma linguagem própria, que abala os pilares da história da arte, determinados jargões e verdades absolutas vinculadas à arte em geral e à pintura em particular.
   

     
Há uma leveza desarmante na obra de Höglinger, que transgride a angústia que marca a nossa forma de viver no presente. Sem cobardia, a sua visão é feita leve, e devolve-nos o resultado de um modo de operar, livre do
pathos das grandes sensações, possibilitando-nos ver (ou viver) o quotidiano sem as restrições que nos são impostas, sejam elas o futuro ou  a morte. Esta força positiva vem desenfreada, e sente-se como o tipo de sabedoria que é a capacidade da arte  para criar novas relações entre coisas, de um modo distinto a ciência e da comunicação, que se baseiam  em diferentes sistemas de conhecimento e linguagem.   

     
Entre a leveza e a gravidade, numa oscilação entre os problemas inerentes à resolução de uma pintura e uma narrativa pessoal que se sobrepõe a qualquer lógica da pintura, amarrada aos problemas académicos e históricos, a obra de Höglinger partilha parte do seu mundo investido no sensível. A partilha do sensível ganha um recorte pessoal na forma como “fixa, simultaneamente, o comum partilhado e as partes exclusivas”
[1]. Por outras palavras, o ato de individuação só acontece no espaço coletivo criado entre a sua obra e o público, na partilha do quotidiano  com o todo, e ao mesmo tempo, como se exclui - individualizando-se, no ato de pintar.   

     
Pintura parece ser uma forma, de certo modo tanto natural, de superação da linguagem, que nos permite ver para além da grelha que molda a forma como compreendemos o mundo.  A partir desta transgressão, e  dentro de uma plasticidade própria da pintura, resultam figurações com um fulgor positivo. Escrevo positivo, porque “quanto tempo poderá a cultura persistir sem um novo? O que acontecerá se os novos não forem capazes de produzir surpresas?”
[2]
   
Como uma faca com duas lâminas, as construções narrativas de Höglinger são dimensionadas pela desenvolvimento processual da pintura e vice versa. A cor é um jogo de intensidades que vai para além da linguagem. Por vezes a utilização de cor extrapola a figuração como superfície, autonomizando, podendo tornar-se abstracta. Por outro lado, as figurações mais simples, resultantes de uma intensidade e imediatez narrativa, exigem, por sua vez, uma quase ausência de cor.
   

     
A pintura de Höglinger joga também na arena das novas subjetividades. As suas pinturas ganham nova vida nas redes sociais. Aqui, o sujeito que revolve o seu interior, através de estímulos e sensações, casa coma subjetividade exterior e tecnológica. Sendo a pintura um meio anacrónico, há algo redentor na forma como as pinturas entram e saem, infectam e deixam-se infectar por um meio aparentemente díspar.


[1] Cardoso, Miguel „Ler Rancière: a improvisação dos incompetentes“, pág. 89-111; Revista Imprópria no2; Ed. Tinta da China/UNIPOP, Lisboa, 2o semestre 2012.

[2] “…how long can a culture persist without a new? What happens if the young are no longer capable of producing surprises” in Mark Fischer, Capitalism Realism – is there no alternative?, Zero Books, Winchester (UK), 2009.


   
Katharina Höglinger (1983)


Vive e trabalha em Viena, Áustria. Licenciada em pintura na Academia de artes da Universidade de Linz.
A sua obra tem sido apresentada de forma regular na Austria e no estrangeiro desde 2014. Das mais recentes exposições individuais destacam-se “a posture for something else”, TOWER, Viena (AT),”Bye now - cry later”, White dwarf projects, Viena (AT), “How I Imagine Afterlife”, Degraw Social Club, Nova Iorque (EUA), e “I Feel You Alive, Raumteiler, Viena (AT). A sua obra foi integrada nos últimos anos em exposições colectivas como “The Eventuality Dispenser, comissariado por MAUVE, “Fettes College”, Edimburgo, (IE) “on love”, Akademie Bibiliothek, Vienna (AT) “Symbolisms”, comissariado por Chris Sharp, Cooper Cole Gallery, Toronto (CA), “worry stone, a diary”, MAUVE, Viena (AT), “Iceman and Goose”, SORT Viena (AT) e Nova Iorque (EUA), “Times New Romantic”, mi1glissé, Berlim (DE),”Limbo Nr 1”, Limbus, Basileia (CH), “Bregenz Biennale”, Bregenz (AT), “Bones can fool people”, com Noel Ody & Helmut Heiss, Kluckyland, Viena (AT), “9 to 5”, Warner Gallery, Toronto (CA), “Creating Common Good”, Vienna Art Week, curated by Ursula-Maria Probst, Kunsthaus Wien, Viena (AT), “A Conflict of Site – Helmut Heiss & Katharina Höglinger”, Postorder Projects, Toronto, “Lote&Larp: HAMMER&HÖGLINGER”, galerie kunstbuero, Viena (AT) e Specks, Gleisdorfergasse, Graz (AT).

Katharina Höglinger, Seated Posture, 2019. pintura rupestre (acrílico). ©João Ferro Martins 
Katharina Höglinger, Seated Posture, 2019. pintura rupestre (acrílico). ©João Ferro Martins 
Katharina Höglinger, Seated Posture, 2019. pintura rupestre (acrílico). ©João Ferro Martins 
Katharina Höglinger, 5 pillows for you sitting in the grotto, 2019. tinta têxtil sobre almofada. ©João Ferro Martins 
Katharina Höglinger, Seated Posture, 2019. pintura rupestre (acrílico). ©João Ferro Martins 
Katharina Höglinger, 5 pillows for you sitting in the grotto, 2019. tinta têxtil sobre almofada. ©João Ferro Martins 
Katharina Höglinger, You told me I was without cowardice, but I covertly told you "I'm not", 2019. lápis e pastel de óleo sobre papel. ©João Ferro Martins 
Katharina Höglinger, The Kiss, 2019. lápis de cor sobre almofada. ©João Ferro Martins 
Katharina Höglinger, Portrait with a vase, 2019. óleo sobre tela. ©João Ferro Martins 
Katharina Höglinger, Two in a row in a park, 2019. lápis sobre papel. ©João Ferro Martins 
Katharina Höglinger, 5 pillows for you sitting in the grotto, 2019. tinta têxtil sobre almofada. ©João Ferro Martins 
Seated Posture (vista de instalação). Katharina Höglinger, . ©João Ferro Martins 
Katharina Höglinger, You think it's me because of my sunglasses and my haircut, but they are in fashion now, 2019. tinta têxtil sobre t-shirt. ©João Ferro Martins