Em Passos dias a voar, Hugo Canoilas apresenta um corpo de trabalho desenvolvido a partir do seu projecto para a 30ª Bienal de São Paulo. No contexto de uma viagem pelo interior de São Paulo, o artista foi inscrevendo trabalhos na paisagem. As imagens desses trabalhos e da paisagem que os envolvia são agora deslocalizadas e inseridas no espaço da galeria. A plasticidade das imagens permite revelar esses objectos em diferentes perspectivas e enquadramentos, numa tentativa de recriar o movimento do objecto - suspenso e exposto à natureza envolvente - e o movimento que o sujeito vai desenhando em torno do mesmo. Mediante uma desterritorialização, Hugo Canoilas pretende dar uma segunda vida a estes objectos, inserindo-os no meio artístico e estabelecendo assim uma antítese relativamente ao que os mesmos representaram no Brasil. Passos dias a voar apresenta também alguns trabalhos desenvolvidos recentemente pelo artista e ainda o vídeo Colagem-viagem, exibido na Bienal de São Paulo em 2012.
NA MARGEM
Quando fui convidado a pensar numa intervenção para o Museu Casa do Bandeirante em São Paulo, como parte da 30º Bienal de São Paulo, intitulada a Iminência das Poéticas, propus a utilização de matéria mole (poesia) como crítica ou corte radical com a matéria rígida (as ideias fortes que do ponto de vista político construíram aquilo que ali estava; um modo de pensar e fazer política no qual todos os meios servem para atingir uma ideia predefinida) que formou as ideias mais tenebrosas por trás daquelas figuras.
Propus então que a minha intervenção para a Bienal de São Paulo funcionasse como um braço estendido da mesma, para o interior do estado de São Paulo. Queria seguir o Rio Tietê e experienciar a viagem para o interior. Este projecto foi transformado numa viagem preparatória, ficando por definir o que trazer para o Museu.
Durante três meses li sobretudo poesia brasileira para me preparar para esta viagem para o interior. O primeiro núcleo de leituras ancorava-se no primeiro modernismo e estava sobretudo ligado ao Movimento antropofágico, iniciado por Oswald de Andrade. O movimento antropofágico foi a forma cristalina como se deu a ver o modo de ser brasileiro. O brasileiro é o indígena, o africano, o português e o amor pelos anglo-saxónicos. O brasileiro é para mim o super humano de Nietzsche que tudo aglutina. Ele apenas regurgita aquilo que o seu corpo ou espírito não consegue absorver. É neste sentido que os intelectuais modernos desejam ir para o interior, conhecer o seu outro, tão distante e ao mesmo tempo tão próximo. O português realiza-se de certa forma na sua ida ao Brasil no modo como descobre o seu outro.
A obra primeira deste projecto foi ”O turista aprendiz” de Mário de Andrade, a última (não cronologicamente mas pela consequência) “Me segura qu'eu vou dar um troço” de Waly Salomão. Waly Salomão fez uma viagem pelo interior, no contexto da beat generation. A sua viagem poética era interior e carrega muitas das minhas convicções. Libertária, feita entre o estômago e a cabeça, fundia a arte com a vida, tentando renovar tanto o pensamento artístico, a forma poética, como carregar um ethos sociopolítico.
No sentido da reflexão sobre o meu trabalho, há ainda dois livros que marcaram muito a forma de actuar na relação entre pintura e o que têm agora diante de vós, que foram “Bacon: a lógica da sensação” de Gilles Deleuze e, na relação entre imagem e palavra, “O destino das imagens”, de Jacques Rancière.
TRÊS PROJECÇÕES
Quando cheguei a São Paulo, comecei por andar pelas ruas a vaguear. Andei à deriva, como li à deriva. Estava a comprazer-me com o caminho e tinha esperanças de encontrar algo de novo. É daí que vem o sentido de deriva - deixar que algo de novo entre dentro do nosso universo, inesperadamente, sem mapeamento ou agência. É daí que vem esta abertura ao todo (da arte e da literatura ao quotidiano). Coleccionar objectos que eram deitados fora – rejeitados (latas de tinta, chapéus de sol partidos, madeiras) - fazia de mim um respigador urbano. Mas estas coisas que não tinham valor para os outros eram exóticas e eróticas para mim pois tinham algo que não pertencia à minha linguagem formal e que eu queria aglutinar, consumir, absorver (é este o sentido do canibalismo na arte e também na filosofia).
Projectei-me de facto sobre estes objectos. Os objectos escolhidos eram para mim receptáculos que recebiam algo interior que desejava ser exteriorizado e por vezes algo de novo que não existia em mim e exigiam ao meu corpo que se alargasse para os receber.
Por vezes necessitei de pintar os objectos, o que é uma forma de os aglutinar, de os domesticar. Esta é uma actividade lenta que necessita de uma certa capacidade de “auscultar” o objecto de forma a colocá-lo de novo activo, capaz de ganhar o tempo e a atenção daquele que passa.
Sobre estes objectos projectei (pintando ora com um stencil metálico ora à mão livre) excertos de poemas e de textos que trouxe comigo em cartões de notas. O texto sobre o objecto resolvia-o como obra.
Fui para a estrada com a ajuda de Marcelo Moscheta - artista fotógrafo que me acompanhou e guiou para o interior - sempre pela estrada junto ao Rio Tietê, conhecida como Rota dos Bandeirantes. Levámos quinze dias a fazer 150 quilómetros e visitámos todas as pequenas aldeias que tinham construções coloniais e que faziam parte do antigo trilho dos bandeirantes: Santana do Parnaíba, Pirapora do Bom Jesus, Itú, Salto, Porto Feliz, Tietê, Embú das Artes, Cotia e Caparicuíba. Falámos com as pessoas, ficámos em pensões e por vezes jantámos e dormimos em casa de pessoas que tínhamos acabado de conhecer na rua. Com todo o tempo do mundo, falámos com os turismólogos de cada cidade (uma pessoa formada para dar a ver a povoação no seu contexto histórico e social). Ganhámos com esta experiência um impulso, ou uma decisão, para inserir os objectos nos locais que davam ao objecto a capacidade de absorver as projecções no plano social, religioso ou político daquele que passa. Os objectos-texto foram instalados nos únicos locais onde poderiam ser colocados, fechando um círculo e criando um sentido no todo (a tal mimesis entre um ethos social e artístico mencionada anteriormente). Os objectos eram uma arco em tensão entre mim e aquelas populações, entre mim e o Outro.
Os objectos foram instalados e abandonados ao mesmo tempo.
Para que estes objectos existissem fora de mim, eu necessitava de testemunhas. Sempre nas margens do rio Tietê, passaram a aguardar que alguém os descobrisse, dispensando assim um tempo diferente do tempo quotidiano a relacionar-se com o objecto. Estes objectos-texto eram segredos, como mensagens deixadas num livro para alguém ler sabendo que esse alguém, ao usufruir da obra, tornar-se-ia também dono dela. Estes objectos ali não eram obras de arte. Eles procuravam, tal como na arte, uma testemunha para que a sua existência fosse um facto mas não existe qualquer moldura que agregue estes objectos ao mundo da arte. Eu procurei estabelecer, como em diversas intervenções urbanas que tenho vindo a fazer, uma relação horizontal - sem hierarquias entre eu e o Outro.
Seria aliás prepotente pensar que os transeuntes poderiam ver aquilo que ali estava como arte. A sua forma era precária e a única vontade era que estes objectos-texto pudessem absorver as várias projecções daqueles que por ali passavam, criando uma certa comunidade e um certo tempo vivido.
As peças que dão origem a este texto são feitas com fotografias destes objectos, processadas com resina epoxy e pigmentos, sobre chapas de alumínio. Pretendem dar uma segunda vida a estes objectos no meio da arte, por oposição àquilo que foram no Brasil.
Como imagens que dão a ver um objecto, elas dão a ver o objecto várias vezes, por vezes grande ou pequeno, um e outro lado da mesma peça. Este ver e dar a de novo tenta replicar ora o movimento do objecto - ao vento, suspenso - ora o nosso movimento em torno destes. A montagem digital das várias fotografias numa só fotografia prende-se com a história da imagem e da criminologia, com o “Blow up” de Michelangelo Antonioni, com a obra de Anna Opperman e com o nosso olhar formado pela internet. Ver a mesma coisa uma e outra vez. Isto não é aquilo.
Depois as imagens são processadas muito rapidamente. A resina seca em meia hora e a pintura (a utilização de pigmentação com a resina) é feita alla prima.
A pintura é antes de mais um movimento interior de aproximação e possessão das imagens. Desejo torná-las minhas enquanto obra e para tal utilizo matéria mole, afirmativa, interior, capaz de absorver projecções, minhas e dos outros.
A pintura é aqui também um elogio àquilo que ali está. Esse elogio acarreta uma pluralidade ora pela utilização de decisões formais já por mim realizadas anteriormente ora pela novidade de algo que acontece ali pela necessidade de servir (dar a ver ou suprimir) a imagem.
Hugo Canoilas, Viena, 2015.