Ângelo de Sousa faria hoje 75 anos. Nasceu em Moçambique, viveu no Porto e em Londres. Estudou pintura e deu aulas. Fez cenografia, figuração, pintura, escultura, desenho, filme, fotografia. Trabalhou com o papel, com a película, com o metal, com a tela. Experimentou continuamente novas técnicas. Como chegou a revelar numa entrevista (Público, 30 Março 2011), o que queria era trabalhar, poder fazer coisas. Fez em permanência e até aos últimos anos da sua vida. A sua obra, imensa, está agora a ser organizada e catalogada.
Memorial com vídeos de Regina Guimarães e fotografias inéditas.
Ângelo de Sousa
Texto de José Gil lido no funeral de Ângelo de Sousa e publicado no jornal Público de 4 de Abril de 2011
Quantas vezes, quando pensava no Ângelo, me perguntei a mim mesmo: como foi possível o Ângelo? Como foi possível aquele ser tão fora do comum, tão extraordinário; possível que ele vivesse e produzisse e fizesse o que fez em condições tão adversas como foram a do nosso país? E não sei responder à questão.
Sei apenas que o Ângelo era um bloco de linhas de fuga. Por isso era um ser tão livre. O que geralmente se diz dele, excêntrico, totalmente informal – é certamente verdade, mas diz pouco. Por que é que nós todos gostávamos do Ângelo? Gostávamos dele de maneira diferente daquela com que habitualmente se gosta de um amigo. O Ângelo fazia-nos rir com o seu sarcasmo ou ironia, espantava-nos com a sua linguagem crua ou o seu calão, siderava-nos com a sua liberdade de linguagem, de gestos e de comportamentos. E, com isso, atingia-nos profundamente. Transmitia-nos parte da sua livre loucura e, com ela, parte da sua vida intensa e inteligência. O Ângelo era um daqueles seres raríssimos sem ego. Nada a esconder, nada a defender ou preservar, uma imagem social, um estatuto, uma carreira, uma psicologia. Quando falava, trazia a vertigem consigo. A vertigem da ausência de ego que alastrava para o exterior, os outros, abanando as leis do hábito, das convenções e da estupidez. Não suportava a estupidez e a grosseria. E se às vezes o víamos furioso contra alguém ou alguma coisa, era porque esse elemento exterior ameaçava colar-lhe, insuflar-lhe um qualquer ego psicológico ou social. Por isso o Ângelo passou a vida irritado contra tudo e todos os que lhe queriam impor um ego – usando calão em situações formais, referindo-se em termos triviais a objectos de cultura. Tinha horror à “pose” cultural, à seriedade hipócrita das convenções, ao discurso sábio “intelectual” – e à interioridade que se finge possuir para parecer profundo. Todo ele era o oposto disto, exterioridade, velocidade, espontaneidade. Um pudor natural impedia-o de se “mostrar” culto – ele, tão extraordinariamente culto e inteligente.
Porque não tinha ego era um ser livre. Porque era livre – das pessoas mais livres que conheci – era imprevisível: não surgia nunca onde o julgavam apanhar. Porque era imprevisível, tinha a afectividade nascente e poderosa das crianças. A sua potência vital. Por isso da sua obra jorra o júbilo único de existir – como uma cor para uma criança, como um movimento que faz existir uma coisa.
Podia parecer, às vezes, que a velocidade extrema da sua inteligência e a distância que cultivava na linguagem afectiva faziam do Ângelo um ser quase abstracto – porque detestava sentimentalismos, autocomplacências no queixume, subjectividades “profundas” e “interiorices”. Julgá-lo assim seria não o conhecer. O seu narcisismo era vital e totalmente generoso. Directo e despojado. Imediato e sem encenações. E, no seu pudor e na sua intensidade, inteiramente elegante. Os seus amigos que o digam. Esse ser rugoso, que podia até parecer rude e não trabalhado, tinha uma extrema elegância que era, afinal, uma ética. O que tornava um privilégio ser seu amigo ou apenas saber adivinhar nele essa delicadeza. Saber ser tocado por essa graça quase invisível.
Porque não tinha ego, não pertencia aos seres comuns. Não lhe conhecia rancores, invejas, mas capacidade de admiração. Ele, que podia afectar directamente os indivíduos com a sua força de vida, sabia passar entre as pessoas, escapar-lhes, não se deixar capturar. Deixar o vento veloz atravessá-lo. Era um ser livre, um ser de velocidade e inteligência.
Este é o Ângelo de todos nós. Que está na sua obra, também. Que ela, ao menos, apazigue a nossa inquietação, pela perda de tão extraordinário ser e amigo.