2012.09.16—
Memorial 1923-2012
Fernando Lanhas

Fernando Lanhas faria hoje 89 anos. O seu pensamento era feito de constelações, sonhos de levitação, fósseis, areias. Um exercício necessário para a compreensão das origens do mundo e do tempo que resta. Atento à geometria e às mutações, procurava o rigor da linha e a dúvida nascida da especulação. O seu abstracionismo esteve sempre próximo do céu – e das estrelas -, do mar, dos seixos e da música. Uma arte da intimidade, cosmológica, mística: única no contexto da arte portuguesa do último século. Uma pintura das esferas, celestial, alquímica: a exacta correspondência entre o baixo e o alto. Como dizia o artista: “Não quero inventar, não faço nada à toa. Não sei onde buscar, porque se fazemos um retrato, uma representação, isso é outra coisa. O homem sabe muito pouco de si. Temos uma acumulação de saber formidável, o que mais temos é saber e do que mais sofremos é da ignorância.”

Memorial com imagens inéditas do artista.

O pintor, os sonhos, a máscara e as obras dele

Entrevista de Óscar Faria publicada no suplemento "Zoom" do jornal Público de 25 de Novembro de 1994

P – Gostava que me falasse sobre os seus sonhos de levitação...

R – Um sonho de levitação é, de certo modo, um sonho como outro qualquer; ele parece-se com uma evasão, não sei muito disso, não é da minha área. Quando tive o meu primeiro sonho de levitação contava 34 anos, embora tenha sonhos registados desde os cinco anos. Sonhar que se sai do mundo, que se sai da terra, que se eleva no ar, é qualquer coisa de... Não sei o que é que possa ser... É qualquer coisa de quê? De afastamento? De conquistado? Não sei. A princípio custou-me imenso fazer a levitação, elevar-me no ar. Ficava exausto. Então, comecei a erguer-me, foi uma autêntica aprendizagem. Um dia houve em que quis mesmo levitar. Acordei, sentei-me na cama e experimentei erguer-me. De certo que isso não aconteceu, mas fiz essa tentativa perfeitamente acordado. Esta confusão da realidade e do sonho, afinal, tem-se mantido continuamente.

P – Quando surgiu a ideia de construir uma máscara que o protegesse do exterior?

R – Tal como acontece em todos os sonhos, eles aparecem quase de surpresa. Sonhei que queria trabalhar e que era incomodado no meu trabalho. A verdade é que isso corta o pensamento, ficamos prejudicados. Valha-nos Deus, nós não podemos estar sempre a ser cortados na nossa meditação, naquilo que queremos saber muito. Um telefone, um recado, o bater à porta, isso perturba-nos. Tudo somado levou-me – a gente não sabe como acontecem as coisas – a um dia sonhar com um capacete especial que me defendia de tudo quanto havia de fora, dos homens, que são os primeiros a perturbarem-nos. Arranjei, assim, em sonho, um capacete, uma máscara que me defendia de todo o exterior. Essa máscara desenhei-a logo no dia em que o sonho me aconteceu e, um ano ou dois depois, deu-me para a construir em cartão. Realizá-la não foi problema nenhum.

P – Chegou a utilizá-la?

R – Essa do utilizá-la, agora, teve graça... Nem sequer a ponho. Nunca ninguém me tirou uma fotografia com a máscara; não gosto de coisas dessas. É uma coisa muito séria. Não se inventa.

P – Como é que surgiu o grupo dos Independentes, de que foi um dos fundadores?

R –Surgiu tal como aconteceu a arte. A actividade artística nasceu, supunhamos, há 20 mil anos, quando um homem notou um traço numa pedra – ou provocado ou acidental – e fez, depois, outro igual à distância de um dedo. Depois, fez outro, e aquela pedra ficou com três sulcos. Ele olhou essa pedra e achou-lhe interesse. Depois, fez mais alguma coisa: havia carvões, rochas de cor, moluscos, bagas e ele começou a fazer coisas com a cor proveniente desses animais, plantas e minerais. Depois até fez coisas notáveis em Espanha, em Altamira, até cá, há 17 mil anos também pintou a cor, no Escoural. Um dia, essa pintura, essas cores, esses sulcos gravados começaram a mostrar-se úteis, mas úteis de outro modo, porque o homem esperto já era, mas precisava de ser mais ainda.

P – Como tomou contacto com o abstraccionismo?

R –Como todos sabem , não tirei um curso de pintura. Tirei arquitectura com uma consciência perfeita do meu curso. Nunca tentei desviar-me ou mudar de rumo. Estava perfeitamente certo. No entanto, uma altura houve em que fui chamado a colaborar com artistas. Sentia-me perfeitamente à vontade para dar uma simples colaboração. Assim aconteceu. Depois – e agora é que faria uma referência ao grupo dos Independentes – pareceu-me que era preciso continuar. Disse: É preciso fazer. Todos, meus queridos amigos e colegas o queriam também, mas era preciso fazer mesmo. E continuei. Talvez, então, aí, tenha a minha quota parte. Isto quanto aos Independentes. Claro que a tarefa não foi nada fácil. De 1944 a 1950, todos os anos tínhamos as nossas exposições.

P – E a arte abstracta, como decidiu enveredar por esse caminho?

R –Quanto exactamente à arte abstracta, nunca se pode explicar muito bem como é que as coisas sucederam. Não tinha, nessa altura, um grande conhecimento do que se passava lá fora. Nessa altura havia guerra. Não tínhamos facilidades nenhumas, nem nos era autorizado, inclusivamente, sair do país. Notei qualquer coisa que andava no ar. Às vezes penso um pouco, como num esquema, que as coisas andavam um palmo acima de nós e foi isso que fiz por captar. Vi, experimentei e desenhei composições não figurativas, perfeitamante abstractas. Não eram geométricas. Era antes uma arte que não tinha desenho entre nós. Estou a falar em 1943, quando desenhei o meu primeiro quadro, que depois pintei em 1944. A princípio utilizei a música, que me impressionava, e, como tal, retratei-a de uma forma abstracta. Em mim, a arte começou assim, por imaginação, sem qualquer compromisso de ordem alguma. Inventava a composição, não tinha nada a ver com alguma coisa que tivesse visto.

P – O primeiro óleo abstracto “1-43-44” não pode ser olhado como uma continuidade lógica, como uma depuração, do figurativo “Cais”, pintado em 1944?

R –Não sei se cada um dos artistas nasce com um desenho. Talvez. As coisas de Mondrian, de Van Gogh, de Théo van Doesburg, de Kandinsky, parecem-me as mesmas ao longo da vida deles. De uma forma muito subtil, vejo o mesmo, porque há um espírito, um desejo, que permanece. O artista nasce de uma maneira, o seu convívio com os outros não o altera totalmente, apenas lhe é imposta uma maior facilidade de mostrar as coisas, mas o conteúdo mais íntimo – Isto seria mais próprio ser dito por um filósofo da arte, que é uma coisa que não sei se existe tal como a entendo. Mas isto há-de acontecer, se não for feito por nós é elaborado por aparelhos...

P – Qual a necessidade de pintar pedras?

R –A primeira pedra que pintei foi em 1944. Não a tenho, perdeu-se. Pintei, numa segunda vez, uns paralelipípedos dos arruamentos, porque aí apetecia-me pintar em pedras com uma delineação exacta. Também desapareceram. A terceira pedra que pintei foi em 1949. As pedras sempre tiveram para mim um grande encantamento: tinha 12, 13 anos e já fazia colecção de seixos, calhaus rolados; coleccionava-os pelo tamanho, pela cor e pela forma. Em 1949, fiz mais duas pinturas em calhaus perfeitos, que me despertaram o interesse por qualquer razão. Não lhes acrescentei nada, porque eles já estavam certos, mas apeteceu-me estar presente nesses calhaus. É mesmo assim, estive presente nessas pedras. É muitíssimo difícil pintar um calhau! Nós pôrmos-lhe alguma coisa... mas pôr o quê? É horrível, porque a gente não sabe nunca o que acrescentar. Do cento de calhaus que fiz até hoje, tenho quatro, cinco que estão dignos, os outros a gente não os abandona porque parece que não o devemos fazer. Os que estão bem, tenho a certeza que o estão. Mas saber como se fazem, não há gramática possível...

P – Aplica muitas vezes o pó resultante de pedras por si moídas nas pinturas que executa...

R –Em certo momento – não posso dizer que tenha sido desde a primeira obra que pensei assim –, apeteceu-me fazer como as pedras do mar, das montanhas, como as árvores que vemos nos campos, nas florestas; fazer a mesma coisa, seguir o mesmo modo natural. Assim comecei a usar tonalidades, cores, de obras que atingiram o seu ponto acertado. Aplicar cores que já estão certas naturalmente. As cores dos seixos estão queimadas, oxidadas, batidas pelo mar, pela areia, pelo seu movimento de vai-vém. Esse desgaste seduz-me, interessa-me, porque é autêntico, verdadeiro.

P – A natureza é abstracta?

R – É curioso como se pode fazer uma pergunta tão difícil. A arte abstracta é uma arte perfeitamente íntima. É uma arte que não anda pelo lado de fora. A natureza não tem nada que ver com compromissos. A natureza segue uma linha natural sobre a qual não entendemos absolutamente nada. A natureza não erra, mesmo aqueles fenómenos que parecem errados não foi ela que os fez. Houve acontecimentos exteriores que estragaram, demoliram o fenómeno natural tal como ele seguia. Veja-se, por exemplo, animais que existiram há 500 milhões de anos, como as trilobites, que desapareceram. E viveram 200 ou 300 milhões de anos. Sossegadamente. Um dia foram condenadas a desaparecer. Nós estamos aqui há 3 milhões de anos ou 1 milhão de anos ou 35 mil anos, conforme se defina o homem. Com o tempo acontecem coisas francamente inacreditáveis ou então não é o tempo. E se não é o tempo já não sei.

P – Pode afirmar-se que as sua pinturas são naturalistas [não confundir com o movimento histórico]?

R – São absolutamente naturais... Naturalistas? Pois são, porque faço as coisas rigorosamente como sou aconselhado por mim. Como sou uma pessoa julgo que sã no pensamento e na arte, essas coisas são uma consequência dessa evidência, desse modo natural como elas devem ser. O que muitas vezes não sei é onde é que elas estão. Aí encontra-se o meu grande drama, mas é um drama autêntico! É que eu não sei onde procurar as coisas, não sei como elas são. Não conheço ninguém com mais dificuldade do que eu em fazer coisas. Fazer o quê? Não quero inventar, não faço nada à toa. Não sei onde buscar, porque se fazemos um retrato, uma representação, isso é outra coisa. O homem sabe muito pouco de si. Temos uma acumulação de saber formidável, o que mais temos é saber e do que mais sofremos é da ignorância.

P – Por isso diz que os seus trabalhos possuem algo de místico?

R –Místicos, porque se mantém aquela desconfiança de não saber de onde parto. Há, também, um modo de querer representar, quase como uma saudação a esse mundo que não entendo, que não está longe, que está dentro de nós, de cada um que, porventura, seja artista, que é o pior que pode acontecer aos homens.

“O artista está exacto com o tempo”

Artigo de Óscar Faria publicado no suplemento "Zoom" do jornal Público de 25 de Novembro de 1994

 

Antes do almoço previamente combinado, ainda na Galeria Quadrado Azul, enquanto posava para as fotografias junto da sua última serigrafia (S8-94), Fernando Lanhas foi confrontado com a hipótese daquela obra conter, em si, uma dimensão religiosa. “Prefiro mística, como a há em todos os trabalhos”, disse o artista, como resposta à especulação levantada. Já no restaurante completou o seu raciocínio: “Disse mística, porque desconfio muito da natureza. Ela é de tal modo desconcertante que nos leva a uma perplexidade”. E acrescentou: “Sabemos que existe o tempo numa medida que já não entendemos; sabemos que acontece tudo o que é possível acontecer por mais inusitado que seja, num mundo danado de existir, como em todos os mundos deste céu”.

A conversa, longa, surgiu a propósito da exposição que Lanhas está a apresentar, até ao próximo dia 10 de Dezembro, na Quadrado Azul. O pintor começou por recordar Júlio Pomar, o companheiro com quem, nos primeiros tempos do seu percurso, costumava trocar impressões: “Gostava das palavras dele, não fazia nada que não lhe mostrasse, e vice-versa”. Era o tempo dos Independentes, grupo que reunia, entre outros, Júlio Resende e Nadir Afonso, cujas actividades decorreram de 1944 a 1950.

A mostra actual inicia-se com uma fotografia de grande formato, a preto e branco, de uma “experiência de pintura sobre rochedos na Serra de Valongo” realizada em 1952. Aí, Lanhas, ao lado de sua mulher, aplica a tinta directamente na pedra com a mão. A natureza, sempre. “A arte foi um aproveitamento tardio dos homens; ela continuará, não sabemos até quando, num reforço da sua existência à parte entre os seres vivos”, afirma o pintor-arquitecto.

De repente, no decurso do repasto, do interior de uma pasta, Lanhas retira uma série de documentos. “Vou-me pôr nú”, assinala, gerando assim a necessária expectativa para aquilo que iria passar-se a seguir. Apresenta, então, um dossier que, na capa, após ter sido riscado o nome subjectivo, ostenta o título “Desenhos subconscientes”, uma recolha de criações feitas por outros que não o artista. A selecção do pintor inclui inúmeras “obras” feitas distraidamente, “ao telefone”, por anónimos ou pessoas que com ele convivem, como são os casos de João Pinharanda e Diogo Alpendurada. Uma obra de 1856 dá o tom a uma escolha que mais se diria feita por um surrealista. São desenhos mirabolantes, “viciados” – feitos por crianças que copiam os esteriótipos televisivos – ou “íntimos”. Em todos é possível encontrar o mesmo sistema de representação: tetraedos, bolas, cubos, rolos e coroas.

A propósito destes papéis Lanhas escreve, numa folha perdida entre eles, que “muitas pessoas, a maior parte mas não todas, costuma fazer, em certas situações, uns desenhos conhecidos por sub-conscientes. São desenhos por vezes com interesse, muitas vezes complicados e extensos. Correntemente de grafia simples, parecem estar de acordo com os próprios autores e dizem da sua personalidade com origem num mecanismo subconsciente e que muitos querem realizar quase sofregamente”.

Seguiram-se palavras sobre outro motivo de interesse do artista: as suas pinturas sobre seixos rolados. Um momento no qual, depois de confessar já ter “deitado algumas pedras ao mar por não querer que elas existissem” [caso da P4-51],  Lanhas resolveu revelar as que considera estarem “boas” (em primeiro surge o número de ordem da pedra, segue-se o ano da sua realização): “P2-49”, “P3-49”, “P11-49”, “P27-72”, “P34-74”, “P41-72”, “P42-74”, “P54-74”, “P68-84”, “P83-85” e “P91-86”.

Para se ter uma ideia da obra total de Lanhas, refira-se, em jeito de estatística, que ela é composta por 27 desenhos, 8 serigrafias, 20 colagens, 91pedras e 57 óleos. Uma produção escassa, a que se pode juntar a curiosidade de nos anos de 1945, 1946, 1956,1962 a 1965, 1967, 1971, 1973, 1974, 1976 a 1987, 1989, 1990 e 1991 não ter sido executado qualquer óleo. 26 anos sem trabalhar sobre tela, num percurso de 50 anos [o primeiro óleo abstracto data de 1943/44]. “Não sou um pintor, sou outra coisa qualquer”, sublinha. “Nunca dei pelo tempo que passa, nunca estive inactivo; pintei, olhei as coisas como existem e procurei compreender, estudando, fazendo mapas, especulando hipóteses”, conclui.

Na Quadrado Azul é possível ver o óleo figurativo “Meninas e Barco” – o fundo sobre o qual se recortam as figuras sugeridas pelo título da peça é aparentemente monocromático, nota-se a ausência da paisagem, facto que sugere um sonho ou, antes, a necessidade de Lanhas, já aqui, depurar as imagens que cria —, e também os quadros abstractos “O52-92”, “O56-57-93” e “O57-94”, o último por si elaborado. Tons neutros, sóbrios, linhas precisas que ecoam as dos fósseis que habitualmente recolhe nas suas deambulações pela montanha.

Numa vitrine colocou um “cosmoscópio” construído em 1974, os seus pequenos opúsculos “A visão da via láctea” e “O mundo da geologia” e três folhas de hera (Hedera Canariensis) com aquilo que o pintor aponta como sendo “prováveis mutações genéticas”. Numa outra zona expõem-se desenhos: “D5-47 (Anjo)”, “D16-65-68 (Rapaz com Mundo)” e “D23-88-92 (Cristo)”. Uma série de obras que evoca os misérios da criação. Finalmente, dois trabalhos sobre o Porto, a cidade que o viu nascer em 1923: “D24-93 (Ponte [D. Luís])” e “D26-93 (R. Mousinho [da Silveira]). A montagem, que inaugura as instalações da galeria após as obras a que esta foi sujeita, é excelente.

No ano em que se comemoram os 50 anos da introdução do abstraccionismo geométrico em Portugal, facto a que Lanhas está intimamente associado, a mostra da Quadrado Azul e o livro agora editado testemunham, confirmam, a importância do percurso de um dos nomes essenciais da arte portuguesa do século XX.

“O artista está exacto com o tempo”.